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sábado, 27 de agosto de 2011

O universo "Lynchiano": sensual e surreal

Sabe aqueles dias em que a gente sonha, e quando acorda não consegue entender bulhufas o porquê daquele sonho? Assim é a “caligrafia” cinematográfica dos trabalhos do diretor americano David Lynch, é meio que entrar no mundo dos sonhos, é como querer decifrar sonhos ou pesadelos, e por mais que se tente, sempre soa obscuro e surreal. Às vezes tem-se a nítida impressão de que, ao assistir aos seus filmes, estamos “caminhando” por ambientes e situações que mais parecem um pesadelo, não necessariamente terrível, mas um daqueles bem bizarros, sem nexo, e que mesmo assim, sem muita lógica, a gente quer continuar sonhando, prá saber "que fim vai dar" tais esquisitices.

O cineasta tem o poder de combinar criatividade com um grau elevado de ousadia e estranhamento, literalmente “catucando” o que há de mais bizarro no comportamento humano. O experimentalismo sempre foi utilizado em sua obra, o lado obscuro de ser humano também, fazendo  com que seus filmes fossem, muitas vezes, tachados de “estranhos e ininteligíveis”. Mas se o telespectador buscar assistir o filme como se estivesse dentro do sonho (ora sob a forma de pesadelo) de alguém (ou o seu próprio) vai curtir o filme, mas como em todo sonho, poderá continuar a tachá-lo de “estranho e ininteligível”.

Olhando por esse ângulo, num filme de David Lynch, assim como num sonho, tudo pode acontecer - personagens bizarros, encontros e situações inverossímeis, tudo sob um olhar vertiginoso e muitas vezes tenso, misturando um lado cômico com um gosto amargo, formando um conjunto de estranha beleza e fascínio. Não há como ficar alheio aos seus filmes, o ritmo é sempre alucinante e envolvente, numa atmosfera onírica e geralmente com um significado metafórico ou dúbio, que faz o espectador querer continuar a tentar seguir os passos dos mistérios a rolar na tela, mesmo que no fim, saia maldizendo o diretor, achando que nada teve sentido.

Em “Veludo azul”, seu mais prestigiado cultmovie dos anos 80, Lynch discursa sobre o nosso mundo, sobre como nos relacionamos com ele e com quem o habita, sobre as perversões, as fobias e sentimentos diversos dos seres humanos.
O filme começa pacato, mostrando o cotidiano de uma cidadezinha do interior dos EUA, no melhor estilo “american way of life”, com suas casas e jardins perfeitos, quando de repente o protagonista (o ator Kyle MacLachlan) encontra, no gramado de sua bela residência, nada mais, nada menos que uma orelha humana decepada, cheia de formigas.

E pronto, a partir daí o diretor, com sua “veia cinematográfica” repleta de mistérios e estranhamentos, literalmente “penetra” na tal orelha, para infiltrar o pacato personagem numa rede de intrigas e violência que o levará a um submundo de depravação, sadismo, voyeurismo e total decadência por trás da (aparentemente) tranquila cidadezinha.   

Dennis Hopper vive o insano personagem que mostra, com seu papel, a estranheza e a brutalidade do universo subversivo de David Lynch. Hopper é um traficante sociopata, cruel e violento, que esbraveja xingamentos alternando com lapsos sutis de doentio “romantismo”. 


A bela atriz Isabela Rossellini vive uma cantora de um night-club, com tendência masoquista, que tem uma relação aparentemente “escrava” com o personagem de Dennis Hopper, por conta de um possível seqüestro do seu filho pelo traficante.

Músicas suaves e românticas alternam com sons alucinantes que  acompanham as cenas violentas de espancamento, xingamento e obscenidade, em cenários opressivos e cores doentias. A bela “Blue velvet” (música de Bobby Vinton que deu o título original ao filme) ficou eternizada pela sensualidade de Isabela Rossellini (veja no final do texto).

O ator Dean Stickwell (quase irreconhecível de tão maquiado) canta “In dreams” (propositadamente em “playback”), a bela e soturna canção de Roy Orbison, sob o olhar literalmente “embasbacado” de Dennis Hopper (veja no final do texto), que pára por alguns segundos para apreciar a letra da música para, a seguir, voltar a proferir a sua frase preferida em todo o filme: “fuck-you” (dá prá sair contando o número de vezes em que ele usa o xingamento em todo o filme).

Em “Cidade dos Sonhos”, os elementos Lynchianos estão todos lá – a realidade distorcida, o surrealismo acentuado e o inconsciente de nossas mentes. Resenhar sobre o filme não é tarefa fácil, são teorias e mais teorias tentando explicar os fatos narrados, nesse que é considerado o mais enigmático de todos os filmes do cineasta.

O próprio diretor não revelou as respostas na época do lançamento e comparava seus filmes a “um livro cujo autor tenha morrido antes do lançamento”, não havendo como responder aos “leitores” intrigados, restando a cada um a interpretação que queiram dar, ao seu “bel-prazer”. E a verdade é que “Cidade dos sonhos” só “funciona” se for encarado dessa forma.

Um acidente numa auto-estrada, a “Mulholland Drive” (título original do filme) e uma das vítimas, uma morena sensual (a ex-miss Laura Harring) sai a vagar pelas ruas a procura de um abrigo, e vai parar numa residência desconhecida, entra e se aloja na casa, então sem ocupante naquele momento. A “cidade dos sonhos” é Los Angeles, o sonho de consumo da personagem de Naomi Watts, que quer se tornar uma atriz hollywoodiana de renome e se encaminha para a casa da tia quando depara com a estranha na tal residência.

Como o filme é do cineasta, é de se esperar que se misture realidade ao inconsciente e ao surreal. De repente já não se distingue mais quem é quem no filme, a personagem da loura Naomi se funde em outra, e o mesmo acontece com a da morena Laura, que passam a dividir a personalidade com outra personagem, numa confusão e reviravolta na trama, tirando o telespectador da monotonia dos enredos lineares, fazendo com que o público passe a questionar o que é sonho e o que é realidade no filme.


Se o espectador prestar atenção vai começar a distinguir qual a personagem real e a personagem do inconsciente e acabará por desvendar o “mistério” do filme, mas talvez para isso, terá que assisti-lo mais de uma vez.

Em meio a cenas sensuais entre as duas protagonistas, o diretor mais uma vez utiliza a música quase como personagem nos seus filmes, como na cena em que a cantora Rebekah Del Rio (numa participação especial como ela mesma) canta a bela e comovente música “Llorando” (veja no final do texto), a versão espanhola da música “Crying” (de Roy Orbinson, que ficou famosa na década de 60 e foi regravada nos anos 70 por Don MacLean).

Menos conhecido, mas não menos estranho, da década de 60, o filme  “Eraserheads” tem paisagens industriais desoladas e bebês mutantes. O cineasta também se envolveu com séries televisivas, a famosa “Twin Peaks”, sobre um brutal assassinato de uma jovem adolescente, e também a polêmica ficção científica "Duna" (com a participação do cantor Sting). 


Também famosos, filmou o alucinante "Coração selvagem" (veja no final do texto, crítica de Marcelo Janot) e também foi o diretor convidado de Mel Brooks na produção em preto e branco da verdadeira história do “Homem elefante”, papel comovente do ator John Hurt (faturando o Oscar de melhor ator), um pobre homem deformado por uma doença genética que foi tratado como uma aberração de circo na Londres no século 19 em plena era vitoriana (o filme é da década de 80 e conta também com a ótima atuação de mais dois atores veteranos, Anthony Hopkins e Anne Bancroft). 

Também filmou “The Straigh Story” (no Brasil intitulado, quase ironicamente, de “Uma história real” por ser tratar de uma comovente história verídica, a dos irmãos Straigh), que escapa totalmente do universo surreal de Lynch (veja, no final do texto, o comentário de Marcelo Janot sobre o diretor).

Em resumo, o que se pode concluir da filmografia de David Lynch é que “tudo pode fazer parte de um mesmo lugar que pode levar a lugar nenhum”, e esse lugar nenhum é o mundo dos sonhos do cineasta, considerado por muitos “o parceiro da realidade e do inconsciente” e que dizia que “a vida é muito, muito confusa, e os filmes deveriam ser realizados assim também”.































quinta-feira, 11 de agosto de 2011

A gente se encontra na 66

Na sétima arte, a música tem o poder de impulsionar a narrativa, e contribui (e muito) para o sucesso de um filme, tanto quanto o roteiro, a direção, a fotografia e o desempenho dos atores. A presença de uma música em uma determinada cena poderá estabelecer um ponto de vista (dramático, cômico ou mesmo tragicômico) para a tal cena, proporcionar um ritmo (mais lento ou mais rápido) ajudando a conduzir a ação do protagonista, nos levar para o interior da mente de um personagem, ou mesmo enfatizar uma emoção, induzindo um estado de espírito no telespectador.

No filme “Tudo acontece em Elizabethtown” (o título refere-se a uma cidade do estado de Kentucky, nos EUA), a música faz “companhia” ao ator Orlando Bloom enquanto ele dirige pelo interior da América, cruzando de leste a oeste do país, levando as cinzas do seu pai, cumprindo postumamente a promessa de, já adultos, repetirem a famosa viagem que fizeram no passado, pela “route 66”– no filme, mais precisamente, a “route 60-B” (uma das saídas da famosa “route 66”), como insiste a também protagonista do filme, a atriz Kirsten Dunst, quando relembra ao deprimido Bloom: “Don’t forget:  60-B”.



O filme peca” ao explorar muito pouco essa parte (menos de um terço da película), bem ao estilo “road-movie”, que é a verdadeira “graça” do filme, (imagina desbravar "o horizonte", em busca de um novo amanhã, ao som de músicas divinas), perdendo muito “tempo” com explicações sobre a depressão do personagem por seu fracasso publicitário e às voltas com a família e o velório do pai.

Cameron Crowe, conhecido diretor que sempre utiliza a música quase como um protagonista nos seus filmes, vide “Quase famosos” (leia sobre esse ótimo filme, aqui no blog, na “lista de filmes”), em Elizabethtown o cineasta faz uso da trilha sonora ("montada" pela personagem da atriz Kirsten Dunst, numa espécie de diário de viagem) para levar o espectador ao âmago das emoções do ator principal, nas recordações da sua infância pela famosa estrada com seu pai ainda vivo, e agora carregando as cinzas do mesmo e as espalhando pelos caminhos históricos da rodovia, por onde também passaram Martin Luther king (pregando igualdade racial) e os famosos músicos da Lousiana e do Tennessee (no filme focando principalmente a cidade de Memphis).

O espectador vai sendo embalado (junto com o protagonista) pela voz envolvente de Ryan Adams com a ótima “Come pick me up, também a música “My father's gun” do eterno Elton John, a famosa "Pride do U2, a ótima "Let it all hang out dos anos 60 do grupo The Hombres, "Square one de Tom Petty and Heartbreakers, a voz cativante de Jeff Finlin em "Sugar blue, e The Temptations nos anos 70 cantando “I can’t get next to you”, e tem muito, muito mais (veja no final do texto).

E se você for como eu que, como todo cinéfilo que se preza, nunca se contenta em assistir apenas ao filme (afinal cinema é também cultura, arte, lazer, terapia e muito mais) não perca, nos “extras do DVD”, a íntegra do ótimo bate-papo (que infelizmente foi quase todo cortado na edição) dos atores, e de toda a equipe de produção, na cidade de Memphis, curtindo a famosa cerveja gelada do lendário bar “Earnestine and Hazel” e o seu cultuado e exclusivo “hamburger soul” (ao pé da letra, “alma de hambúrguer”) que, segundo a tradição, não há hambúrguer igual em toda a América”.

Enquanto o proprietário atual do bar (um cara simpático de nome Russell) discursa sobre a cidade de Memphis e seus ilustres moradores como, por exemplo, Elvis Presley (a mansão Graceland, patrimônio da família Presley na cidade, hoje virou museu em homenagem ao cantor) e a fama do bar, com seus célebres freqüentadores de um passado recente (os anos 50/60), no auge da soul music" e do rockabilly (fusão da música country com o “rhythm and blues”, criada pelo próprio Elvis Presley).

A ascensão da soul music norte americana (uma mistura de música gospel com rhythm and blues) fez surgir, nos anos 60, gravadoras famosas, como a Stax records (hoje transformada em museu), com sede em Memphis, e tinha B.B. King, Ottis Redding, Albert King e Bobby Blue Bland como alguns dos seus maiores contratos (os “Stax’s musicians”) e estes eram “figurinhas fáceis” no bar da Earnestine (que, nos extras do DVD, vamos descobrir que era o nome da antiga proprietária, nos anos 50/60, uma simpática senhora negra e gordinha, que comandou o bar até os 80 anos de idade, segundo contam os moradores locais).

No bar ainda conserva-se, até os dias de hoje, o clima bucólico e démodé do recinto, com fotos dos seus ilustres freqüentadores (os “Stax’s musicians”) e ainda funciona a famosa “jukebox”, aquela maquininha que, ao se inserir moedas, reproduz músicas escolhidas pelo cliente em um catálogo próprio.

A cidade de Memphis, no Tennessee, foi palco também de grandes acontecimentos que marcaram a história da América, na década de 60, como o assassinato de Martin Luther King num dos hotéis da cidade. O filme é um mergulho na alma e na música negra americana, focando principalmente a cidade de Memphis, no trajeto da famosa rodovia.

A “US Route 66” é uma antiga e famosa auto-estrada dos EUA que faz a ligação do Oeste ao Leste do país, desde Chicago a Los Angeles, passando por localidades rurais do interior da América, num total de quase quatro mil quilômetros de estrada. Também conhecida como a “Main Street of America” ou a “America's Mother Road”, a estrada é berço do primeiro motel e do primeiro McDonald’s da América (e obviamente do mundo), e é considerada um dos símbolos da América ainda ingênua, perdida no tempo, longe da massificação e da globalização.

Uma das mais conhecidas atrações da famosa rodovia é o “Cadillac Ranch” (veja vídeo no final do texto), onde um excêntrico milionário do Texas, amante de cadillacs, literalmente mandou enterrar, ao longo da estrada, cerca de 10 modelos dessa famosa marca de carro da General Motors, com a metade da frente do carro exposta em filas, onde o público pode grafitá-los ao seu bel-prazer.

A rota 66 é palco de vários outros filmes, como a produção infantil “Cars” dos estúdios Walt Disney Pictures em associação com a Pixar, e a antiga música “Route 66” (“When you make that California trip, get your kicks on Route 66...”), faz parte da trilha sonora do mesmo, que no filme foi interpretada por Chuck Berry e John Mayer, mas já cantada exaustivamente em "verso e prosa" por diversas bandas, inclusive The Rollings Stones (veja no final do texto).

Também foi cenário do filme “Easy rider”, na década de 60, o famoso “road movie” dos motociclistas “sem destino” (nome do filme no Brasil) o "ameríndio" Dennis Hopper e o Capitão América Peter Fonda (veja no final do texto), que conta também com Jack Nicholson como ator iniciante e coadjuvante (em atuação que o levou a categoria de astro), com uma ótima trilha sonora (Born to be wild virou o hino dos motoqueiros, entre outras ótimas músicas) impulsionando os personagens a desbravar a América, bem ao estilo Harley-Davidson de ser.

E a famosa rodovia também é o palco da produção alemã “Bagdad cafe”, da década de 80. O filme é uma comédia dramática que ganhou repercussão internacional ao ganhar o Oscar de melhor canção original, “Calling you”, na linda voz de Jevetta Steele (veja no final do texto). O título Bagdad cafe é o nome de um misto de motel, lanchonete e posto de gasolina, localizado na “route 66”, no meio do deserto de Mojave, deserto que corta o sul da Califórnia, desde o chamado “Vale da morte” (onde ocorre o curioso fenômeno das pedras andantes na Racetrack Playa, conhecida supersticiosamente como a praia do diabo), passando por Utah, depois por Nevada, próximo a Las Vegas, e pelo Arizona.

Num clima desértico e gélido, vai parar uma turista alemã após ser abandonada na estrada pelo marido, logo após uma briga, e ela na confusão pega por engano a mala do marido ao invés da sua. Sem rumo, acaba chegando ao tal “Bagdad cafe” e, inicialmente hostilizada pela proprietária, acaba ganhando a confiança da tal após mostrar sua performance em números de mágica (material que descobriu na mala do marido), tornando-se a atração do local para alegria dos caminhoneiros frequentadores. Jack Palance (de “Os brutos também amam”, mas mais conhecido no Brasil por conta da famosa série, da década de 60, “Acredite se quiser”), faz um papel coadjuvante interessante como um pintor local.

Como curiosidade, o misto de posto/motel, onde foi gravado o filme, era o Sidewinder cafe (o verdadeiro Bagdad cafe já não existia, na época do filme), mas devido ao sucesso do filme (e da route 66) foi trocado para o nome original do filme, tornando-se desde então um destino turístico, inclusive com fotos dos atores, e todo o elenco do filme, nas paredes do bar.

Nos dias de hoje, a “route 66” está com vários trechos abandonados, interditados e intransitáveis, mas ainda é a rota para se embrenhar no que sobrou da América aventureira, ingênua e longe da modernização (Well, if you ever plan to motor west, just take my way, that's the highway, that's the best, get your kicks on Route 66), e assim recordar a frase do cantor Evandro Mesquita que ficou famosa na década de 80 (era uma propaganda de cigarro com a placa símbolo da “Route 66”): “A gente se encontra na 66” (nem que seja através desses filmes e suas ótimas trilhas sonoras).




































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