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domingo, 23 de outubro de 2011

As regras do jogo da vida

Qual a regra que você segue na sua vida? Quais são as regras do seu jogo? Que sentido você dá à sua vida (seja ela pessoal, emocional, profissional)?

Você está sempre inclinado a conceber a misericórdia do perdão? A praticar a sinceridade que ensina? A verdade que corrige?


Qual é o seu espírito de vingança? Um prato que se come frio? Devemos ajudar um estranho carente? Tirar proveito de alguém que nos trata bondosamente?


E se feridos por um amigo, ou ajudado por um inimigo, devemos retribuir na mesma moeda? Dá prá esquecer o passado? Se omitir e “fechar os olhos” quando a injustiça não afeta os nossos entes queridos? 


Não posso conceber que, pessoas de boa índole, se abstenham de qualquer envolvimento com o próximo, e se sintam confortáveis quando dizem “fiz minha obrigação, minha parte, não posso fazer nada, se outros não cumprem as deles” – Martin Luther King deixou escrito: “não me preocupam os gritos dos maus, mas sim o silêncio dos bons”.


Se a falha desses outros prejudica a nós ou ao nosso próximo (sejam eles nossos parentes, nossos clientes, nossos pacientes), claro que temos obrigação de cobrar dessas tais pessoas (ou de autoridades que o valham), pois se cruzamos os braços e não cobramos um compromisso da parte delas, estamos sendo coniventes e cúmplices de negligência e falta de comprometimento com o nosso próximo. Muitas são as opções, e nossas escolhas dependem do que aprendemos na nossa longa e árdua estrada da vida.Desde a infância nos ensinam jogos de ganhar ou perder. 


Assim, jogos de “ganhar-perder” nos parecem tão naturais, ou se ganha ou se perde. Não há ambigüidade nesses jogos. Não temos dúvida sobre as intenções do nosso adversário – de acordo com as regras do jogo ele fará de tudo para nos derrotar e vice-versa. Por isso são chamados de jogos de “soma zero”. Nunca me esqueço de uma tirinha de quadrinhos do Snoopy, em que o divertido cãozinho, durante um jogo de tênis, dizia: “Não importa ganhar ou perder... até você perder”.


Mas, e no “jogo da vida”, que regras vamos usar? O cientista Carl Sagan, no seu livro “Bilhões e bilhões – reflexões sobre vida e morte na virada do milênio”, no capítulo “Os corações e as mentes em conflito”, o intelectual discorre sobre “As regras do jogo” e nos apresenta cinco possíveis regras da vida, todas expostas ao nosso livre arbítrio, que são:


1-    Regra de Ouro: “Faça com o outro o que desejas que te façam”.
2-    Regra de Prata: “Não faças ao outro o que não desejas que te façam”.
3-    Regra de Bronze: “Faz ao outro o que te fazem”.
4-    Regra de Ferro: “Faz ao outro o que quiseres, antes que te façam o mesmo”.
5-    Regra “tit for tat”: “Coopera primeiro, e depois faz ao outro o mesmo que ele te faz.

Aprendemos jogos de ganhar-perder (futebol, vôlei, xadrez, "banco imobiliário", e tantos outros). E por que não nos ensinam finais diferentes, pelo menos, nos jogos da vida?(veja, no final do texto, Snoopy às voltas com a sensação irreparável de perda, e nossa reação muitas vezes desoladora e dramática, quando diante da derrota frente a um adversário). Seriam possíveis jogos de ganhar-ganhar? E de perder-perder? É possível um jogo em que todos saiam literalmente ganhando?

Interesses humanos vitais, como o amor, a amizade, a paternidade e a maternidade, a busca de conhecimentos, na arte e na música, são proposições de ganhar-ganhar. Quanto aos jogos da vida em que todos saem perdendo (perder-perder), temos as guerras (e num mundo de guerras nucleares, a hostilidade inflexível gera perigos terríveis, para todos, sem exceção), os ataques ao meio ambiente e a depressão econômica.


A Regra de Ouro (“Faça com o outro o que desejas que te façam”) é a mais conhecida (e a menos praticada) – vem desde os tempos bíblicos, no Novo Testamento, e é atribuída a Jesus de Nazaré que pregava “ofereça uma face e, mesmo que esbofeteada, ofereça a outra”, ou seja, “pregue a bondade e pague o mal com a bondade”. Mas essa regra não leva em conta a natureza e as diferenças humanas, por exemplo, o masoquista estaria seguindo essa regra ao infligir dor ao seu próximo. Seria justo? Difícil, nos dias de hoje, essa regra ser seguida isoladamente.


Mas, e se a Regra de Ouro for associada à Regra de Prata (“Não faças ao outro o que não desejas que te façam”)? Os exemplos mais inspiradores da Regra de Prata, no século XX, foram Mahatma Gandhi e Martin Luther King (e também seguida pelo atual Dalai Lama). Eles aconselharam povos oprimidos a não pagarem a violência com mais violência, mas também a não serem submissos e obedientes. Ao contrário, pregaram a desobediência civil pacífica - procuravam "derreter" os corações de seus opressores (colocando o próprio corpo na "linha de tiro") e daqueles que ainda não tinham opinião a respeito da causa ou lei injusta.


Mas, como conciliar a regra da não violência contra aqueles com regras menos elevadas de conduta, que só compreendem o domínio e a força? Fica difícil aplicar essa regra quando lidamos com sociopatas, que pouco se importam com os sentimentos alheios, que desconhecem o bom exemplo e sentimentos como piedade ou vergonha, e são incapazes de se redimir, diante de atrocidades e barbaridades cometidas por eles mesmos.


A Regra de Bronze ("Faz aos outros, o que te fazem") era, em parte, pregada pelo pensador chinês Confúcio, que dizia: "Pague a bondade com bondade, mas o mal com justiça". "Se o inimigo se inclina para a paz, incline-se também para a paz"(e vice-versa, segundo a regra). Apesar do aparente caráter prático, violência gera violência e cada lado tem sua “razão” para odiar o outro. A parte razoável dentro de nós tenta manter a paz,  mas diante de atrocidades a nossa parte passional em geral clama por vingança.


Já na Regra de Ferro ("Faz, aos outros, o que quiseres, antes que te façam o mesmo"), aquele que "tem o ouro, cria e dita as regras". Esta é a "máxima" secreta de muitos, o preceito implícito dos poderosos. O cientista nos alerta que "nossa visão fica perigosamente estreita se apenas conhecemos "ganhar/perder", mas se veneramos tanto a Regra de Ouro, por que ela é tão rara nos jogos que ensinamos às nossas crianças"? 


No entanto, as Regras de Ouro e de Prata parecem complacentes demais, pois elas simplesmente deixam de punir a crueldade e a exploração. Com essas regras, espera-se persuadir pessoas a abandonar o mal e a fazer o bem, mostrando que a bondade é possível, mas... e quanto aos sociopatas que desconhecem sentimentos altruístas?


“Haveria alguma regra entre a de Ouro e a de Prata de um lado, e a de Bronze e a de Ferro do outro lado, que funcionaria melhor do que qualquer uma delas sozinha?” indaga em seu livro o cientista e astrônomo Carl Sagan. Com tantas regras diferentes, como podemos saber qual usar, aquela que realmente vai funcionar? Também é correto nos omitir, num claro jogo típico de "não me comprometa"? É fácil falar "faço minha parte e pronto",... e “fecha-se o olho” para injustiças e barbaridades cometidas por outrem a estranhos que não nos dizem respeito?


Segundo o astrônomo, essas perguntas podem ser respondidas cientificamente pela "teoria do jogo", usada em táticas e estratégias militares, na política comercial e na competição comercial. O jogo paradigmático dessa teoria é o "Dilema do Prisioneiro'. E ele está muito distante da soma-zero. Os resultados de ganhar-ganhar, ganhar-perder e perder-perder são todos possíveis.


Imagina que você e um amigo são presos, acusados de cometerem um assassinato. Para fins de jogo, não importa se um de vocês cometeu o crime, se nenhum cometeu o crime, ou se os dois cometeram o crime. O que importa é que a polícia pensa que vocês o cometeram, e ambos são levados separadamente para interrogatório.


No jogo, há três resultados possíveis, com penas distintas, propostas pela polícia:
1-  Se você se declarar inocente e o seu amigo também, o caso será difícil de ser provado, e a sentença será muito leve.
2-  Se você se declarar culpado, e seu amigo também, o Estado não terá gasto para solucionar o caso e a sentença será ainda leve, mas não tão leve quanto à anterior.
3-  Mas se você declarar inocência e seu amigo confessar o crime, o Estado vai pedir sentença máxima para você que alegou inocência, e punição mínima (ou nenhuma) para o seu amigo que se declarou culpado.

Ou seja, tanto você como seu amigo estarão vulneráveis a uma espécie de traição de cada lado. Assim, se você e seu amigo “cooperarem” um com o outro, ou seja, ambos alegando inocência (ou ambos declarando-se culpados), os dois escapam do pior.

Mas, como você não tem idéia do que “teu amigo” vai declarar, se você declarar culpa, haverá a chance de você “se dar bem”, pois a declaração de culpa do teu amigo ainda lhe será benéfica, e se ele ao contrário se declarar inocente, ele se dará mal, e você ao contrário poderá ficar livre mesmo após ter se declarado culpado. Só que, enlouquecedoramente, o seu amigo estará pensando o mesmo que você.


Se cooperarem um com o outro, os dois saem ganhando. Do contrário, um dos dois será imensamente prejudicado. Mas como saber o que pretende o suposto amigo? Por isso, é chamado “o dilema do prisioneiro”. Cientificamente, esse jogo é feito sub-repticiamente, para que os jogadores descubram, pela punição que sofreram, o que o outro deve ter alegado. Ambos ganham, assim, experiência sobre a estratégia (e claro, sobre o caráter) um do outro.


O que se observa cientificamente é que, se você colabora demais, o outro jogador pode explorar a sua boa natureza. E se você trai demais, é provável que seu amigo vá traí-lo muitas vezes, e isso é ruim para os dois. O que se percebeu, nos estudos científicos, é que a estratégia mais eficaz é a chamada “Regra Tit-for-tat” (“pagar na mesma moeda”) – ou seja, você começa colaborando, mas em cada rodada subseqüente apenas faz o que o seu "adversário" lhe fez na vez passada, e quando teu amigo volta a cooperar, você se mostra disposto a esquecer o passado.


E transportando “O dilema do prisioneiro” para o nosso cotidiano, essa é a melhor estratégia que podemos usar nas nossas relações pessoais e profissionais (com o nosso parceiro, com os nossos filhos, com o nosso colega de trabalho), dando-lhes  primeiro um voto de confiança e depois segue-se as regras que o outro joga.

E é assim que hoje eu me relaciono com as pessoas. Inicialmente eu me dedico a elas, me envolvo cooperando em tudo que estiver ao meu alcance, e as respeito, esperando a mesma “cooperação” delas, Mas por exemplo, a partir do momento que não existir mais respeito e/ou consideração de alguém para comigo, a minha estratégia é de também não mais me preocupar em respeitá-lo, e como a partir desse ponto a minha admiração  se esvai “ralo abaixo”, na mesma medida da minha decepção em não receber a mesma 'cooperação" (e isso vale para qualquer tipo de relação seja profissional, pessoal e até íntima), a melhor maneira que encontro na “sequência do jogo” é partir para a “indiferença”, que ainda é “a maneira mais polida de se desprezar alguém” como já disse, um dia, o poeta e cronista Mário Quintana.


É certo que, segundo a tal experiência científica que advoga o cientista em seu excelente livro, se o indivíduo voltar a “colaborar” (leia-se “me respeitar”), eu deveria me mostrar disposta a “esquecer o passado”, mas confesso essa minha falha, posso até tentar perdoar, mas esquecer, ainda para mim, é um esforço sobrenatural, raramente consigo apagar uma mágoa (“Os elefantes nunca esquecem” é o tema, de um dos meus textos, no blog).


Ser traído (pelo parceiro íntimo, pelo amigo, pelo colega de profissão) me leva a um sentimento eterno de desconfiança em relação ao traidor, a uma perda de minha estima para com o traidor que faz com que eu tenha uma grande dificuldade de refazer a admiração que antes existia. Confesso que é uma falha minha, pois todos somos passíveis de errar, mas não me é fácil conviver com esse sentimento de traição (e acho que não sou a única).


No documentário intitulado “Eu maior” (que tem estréia marcada para o fim do ano), há depoimentos de pessoas de vários setores da nossa sociedade (o teólogo Leonardo Boff, o psicanalista, escritor e educador Rubem Alves, o médico Paulo de Tarso Lima, o psiquiatra Flávio Gikovate e outros), discursando a respeito da vida (e do sentido desta), “quem somos e o que estamos fazendo aqui”, as nossas experiências e nossas crenças, a existência ou não de Deus, a busca por autoconhecimento e “da tal da felicidade”.


E termino essas minhas "reflexões" (baseadas em conjecturas e refutações da leitura do excelente livro “Bilhões e bilhões” de Carl Sagan) com uma das muitas e sábias reflexões de Rubem Alves: “O que é que se encontra no início? O jardim ou o jardineiro? É o jardineiro. Havendo um jardineiro, mais cedo ou mais tarde, um jardim aparecerá. Mas, havendo um jardim sem jardineiro, mais cedo ou mais tarde ele desaparecerá. O que é um jardineiro? Uma pessoa cujo pensamento está cheio de jardins. O que faz um jardim são os pensamentos do jardineiro. O que faz um povo são os pensamentos daqueles que o compõem”.



Em tempo: o cinema está sempre repleto de filmes sobre ensinamentos altruístas (veja, no final do texto, uma "coletânea" de frases reflexivas, retiradas de várias películas famosas). No filme "A corrente do bem", kevin Spacey ensina crianças (o ator mirim Haken Joel Osment) a se tornarem altruístas e se comprometerem a transformar o mundo num lugar melhor de se viver. O filme "No man's land" de 2001 (no Brasil ,"Terra de ninguém") mostra a (im)provável solidariedade entre um sérvio e um bósnio, que acontece quando os objetivos militares se perdem e entra em jogo a própria sobrevivência.

E o filme “Sete anos no Tibet” traz Brad Pitt na pele do verdadeiro Heinrich Harrer, alpinista austríaco que tinha decidido escalar o pico mais alto do Himalaia, na década de 40. Arrogante militante do partido nazista em plena segunda guerra mundial, acaba sendo detido, mas consegue escapar do campo de prisioneiros na Índia, indo parar no Tibet, onde conhece o atual Dalai Lama, Tenzin Gyatzo, ainda menino. E a amizade com o futuro líder religioso, a proximidade com a cultura local e o budismo fazem o ambicioso desportista experimentar uma nova filosofia de vida, deixando a mesquinhez e a arrogância de lado, transformando-se num ser humano altruísta e solidário com o próximo (veja trailer abaixo).

















sábado, 15 de outubro de 2011

"Melancolia" de Lars Von Trier e Reflexões" de Carl Sagan



Um soco no estômago. Essa é a sensação que o filme “Melancolia” de Lars Von Trier deixa na gente. Pelo menos, foi assim comigo. Por causa do tema – um misto de fim dos tempos (com um planeta que se encontra na rota de colisão com a Terra) e o desamparo do ser humano em relação à vida e à sua própria finitude – e em parte também por causa da câmera “propositadamente inquieta” na mão do diretor em algumas cenas do filme.

O filme é estarrecedor e extremamente provocativo. Já nas cenas de abertura, com a câmera em “slow-motion”, lentíssima, somos tomados (e atraídos) por um sentimento de magnetismo e cumplicidade com os personagens que, com os movimentos extremamente vagarosos parecem flutuar nas belíssimas paisagens “pré-apocalípticas”, com suas fisionomias melancólicas e quase estáticas.




O cinema de Lars Von Trier é único (leia sobre esse brilhante cineasta dinamarquês, aqui no blog, em maio de 2011), o diretor é de uma perícia técnica cinematográfica imbatível 
e sem concorrente no cinema atual. Nas tomadas do planeta invasor, quando ele aparece no céu como uma segunda lua, as sombras provocadas pelos dois “luares” são impressionantes, num jogo de imagem e câmera extraordinários. Magistral.

Terminado o filme, num fim surpreendente, tive dificuldade de me levantar da cadeira da sala de projeção do shopping, e caminhei pelos amplos corredores do cinema, cambaleante, meio que sem rumo. Fui sozinha assistir ao filme, sabia que teria que ser uma experiência isolada e solitária e que não poderia compartilhar com ninguém a presumida e derradeira “melancolia de fim dos tempos” que o filme provavelmente me provocaria.



Ao alcançar os corredores do shopping quase vazio (era um dia de pouco movimento, ainda bem – detesto cinema dentro de shopping – multidão seria ainda mais desconcertante) respirei fundo, e num esforço, tentei tomar um café para tentar amenizar o impacto e o amargor da sensação de desamparo reflexivo do sentido da vida (ou da falta dele) que o filme nos deixa, mas não consegui, o café me pareceu ainda mais amargo. Desisti, e fui em direção ao estacionamento, paguei, peguei o carro e dirigi até minha casa, tudo praticamente no “piloto automático”,

porque, por minha mente, só passava a imagem da atriz kirsten Dunst e suas palavras proféticas: “A vida só existe na Terra...nós estamos sozinhos, sempre estivemos sozinhos”. O que me fez lembrar-me das palavras derradeiras de Carl Sagan quando escreveu, no seu livro “Pálido ponto azul“ (“Pale blue dot”), sobre o nosso planeta: “A Terra é um mero ponto em um vasto cosmo circundante, e na escala dos mundos os humanos são irrelevantes”.

O astrônomo americano Carl Sagan foi o segundo cientista mais popular do século XX, depois do físico Albert Einstein. Ficou bastante conhecido do grande público na década de 80 por apresentar a série televisiva americana “Cosmos” baseada no seu livro homônimo. O cientista reunia a rara capacidade de transmitir, de maneira simples, temas científicos bastante complexos, sem no entanto menosprezar a inteligência do leitor. Através de dados estatísticos, divagações, analogias, mitos e histórias, ele tratava de vários assuntos, sempre fiel ao compromisso de cientista, versando sobre o quão ínfimos somos nós em relação ao cosmo, despertando-nos a uma reflexão da nossa existência no planeta e no universo.

O cientista foi consultor e conselheiro da NASA desde os anos 50, e trabalhou com os astronautas do projeto Apollo antes de suas idas à Lua, e também participou das missões Voyager cujo objetivo era estudar os planetas Júpiter e Saturno e suas luas.

Li recentemente o livro póstumo do cientista, intitulado “Bilhões e bilhões – reflexões sobre vida e morte na virada do milênio” (textos sobre temas diversos publicados pela sua esposa, após a sua morte), e me pareceu que o cineasta dinamarquês também andou lendo o astrônomo e se inspirando nas palavras do cientista para filmar “Melancolia”.  

Ao ler Sagan vamos descobrir que “talvez não haja melhor demonstração da tolice das vaidades humanas do que a imagem distante do nosso pequeno mundo, pois ela enfatiza nossa responsabilidade de tratarmos melhor uns aos outros, e de preservar e estimar o único lar que conhecemos” e que “não há nenhum indício de que a ajuda virá de algum outro lugar para nos salvarmos de nós mesmos” (lembrando as palavras da protagonista em “Melancolia”), nos convocando para revermos nossas atitudes em relação ao meio-ambiente, aos poluentes, ao buraco na camada de ozônio, nossa imaginária auto-importância, a ilusão de que temos alguma importância privilegiada no universo.

A leitura dos seus livros é extremamente prazerosa. Inteligente e perspicaz, ele incita o leitor a reflexões sobre vida e morte (do planeta, do Universo, do ser humano), sobre caráter, religião, crendices, assim como perguntas (sem respostas, óbvio) sobre a origem da vida, a existência ou não de Deus e de extraterrestres.

Numa linguagem clara e razoavelmente técnica, mas compreensível para o leigo em astronomia e física, ele alerta para a elevação da temperatura no planeta e o efeito estufa, a degradação da camada de ozônio e a devastação das florestas, e desperta reflexões profundas no leitor sobre os cuidados que devemos tomar para frearmos a destruição do planeta, sugerindo inclusive soluções simples e sensatas para tal, como  a união da ciência com a religião.

Mas também nos diverte com suas histórias, como a do título do seu livro “Bilhões e bilhões”, sobre o imaginário popular em relação a números infinitamente grandes (“pois é difícil falar sobre o cosmos sem usar números grandes”) como milhões, bilhões e trilhões.

Como, por exemplo, quando ele cita, no livro, uma antiga piada sobre um expositor de um planetário que diz à sua platéia: “Em cinco bilhões de anos, o Sol vai aumentar até se tornar um gigante vermelho inchado que engolirá os planetas Mercúrio e Vênus e finalmente engolirá a Terra”. Mais tarde, um ansioso (e temeroso) membro da platéia o aborda: “Desculpe-me, doutor, mas o senhor disse que o Sol vai arrebentar a Terra em cinco bilhões de anos? “Sim, mais ou menos”, concorda o orador. “Graças a Deus”, responde aliviado o ouvinte, ”por um momento pensei que tivesse dito só cinco milhões de anos”.

O cientista morreu em 1996, aos 62 anos, após ser vencido numa árdua luta de dois anos contra um câncer de medula óssea, e toda sua batalha pela vida, contra a doença, está registrada também no livro “Bilhões e bilhões”. Além das reflexões sobre o sentido da vida (e da sua própria), o cientista discute questões científicas, filosóficas e políticas que tanto o inquietavam, temas polêmicos como a vida em outro planeta e a existência ou não de Deus, debate sobre os interesses financeiros sórdidos que existem por trás dos tratados que visam diminuir os gases poluentes e a produção de clorofluorcarbonetos que contribuem para o aquecimento global do planeta.

Além da série televisiva “Cosmos”, outro livro do cientista foi parar nas telas do cinema. “Contatos” (“Contacts”) foi adaptado para o cinema em 1997 e estrelado pela atriz Jodie Foster. Ficção científica sobre contatos com alienígenas em que ciência e razão são confrontados com religião e fé.

O belo vídeo “Pense” (veja no final do texto), narrado pelo próprio cientista, com cenas de memoráveis filmes de cinema, mostra o minúsculo ponto solitário que representa o nosso pequeno planeta na grande e envolvente escuridão cósmica, e que conhecer astronomia leva a uma experiência de humildade e formação de caráter, pois “o planeta Terra é um palco muito pequeno numa imensa arena cósmica”, e “goste ou não a Terra é o lugar que estamos estabelecidos” alertando-nos sobre a responsabilidade de cuidar e preservar o “pequeno e pálido ponto azul”.

Quanto à “Melancolia”, uma experiência cinematográfica avassaladora, é o cinema em forma de poesia impactante alertando para a catástrofe que tanto temia o cientista morto. Torçamos para que o fim dos tempos seja sempre uma bela ficção poética e apocalíptica do cinema. Só do cinema.

E relembrando outro grande cineasta, o intelectual existencialista "neurótico e nervoso" Woody Allen, questionador do inquestionável: "Mais do que nunca na história, a humanidade está numa encruzilhada. Um caminho leva ao desespero e a absoluta falta de esperança. O outro à total extinção. Vamos rezar para escolhermos corretamente".






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