Um soco no estômago. Essa é
a sensação que o filme “Melancolia” de Lars Von Trier deixa na gente. Pelo
menos, foi assim comigo. Por causa do tema – um misto de fim dos tempos (com um
planeta que se encontra na rota de colisão com a Terra) e o desamparo do ser
humano em relação à vida e à sua própria finitude – e em parte também por
causa da câmera “propositadamente inquieta” na mão do diretor em algumas cenas do
filme.
O filme é estarrecedor e
extremamente provocativo. Já nas cenas de abertura, com a câmera em
“slow-motion”, lentíssima, somos tomados (e atraídos) por um sentimento de
magnetismo e cumplicidade com os personagens que, com os movimentos extremamente
vagarosos parecem flutuar nas belíssimas paisagens “pré-apocalípticas”, com
suas fisionomias melancólicas e quase estáticas.
O cinema de Lars Von Trier é único (leia sobre esse brilhante cineasta dinamarquês, aqui no blog, em maio de 2011), o diretor é de uma perícia técnica cinematográfica imbatível
e sem concorrente no cinema atual. Nas tomadas do planeta invasor, quando ele aparece no céu como uma segunda lua, as sombras provocadas pelos dois “luares” são impressionantes, num jogo de imagem e câmera extraordinários. Magistral.
Terminado o filme, num fim
surpreendente, tive dificuldade de me levantar da cadeira da sala de projeção
do shopping, e caminhei pelos amplos corredores do cinema, cambaleante, meio
que sem rumo. Fui sozinha assistir ao filme, sabia que teria que ser uma
experiência isolada e solitária e que não poderia compartilhar com ninguém a
presumida e derradeira “melancolia de fim dos tempos” que o filme provavelmente
me provocaria.
Ao alcançar os corredores
do shopping quase vazio (era um dia de pouco movimento, ainda bem – detesto cinema dentro de shopping – multidão
seria ainda mais desconcertante) respirei fundo, e num esforço, tentei tomar um
café para tentar amenizar o impacto e o amargor da sensação de desamparo
reflexivo do sentido da vida (ou da falta dele) que o filme nos deixa, mas não
consegui, o café me pareceu ainda mais amargo. Desisti, e fui em direção ao
estacionamento, paguei, peguei o carro e dirigi até minha casa, tudo
praticamente no “piloto automático”,
porque, por minha mente, só
passava a imagem da atriz kirsten Dunst e suas palavras proféticas: “A vida só
existe na Terra...nós estamos sozinhos, sempre estivemos sozinhos”. O que me
fez lembrar-me das palavras derradeiras de Carl Sagan quando escreveu, no seu
livro “Pálido ponto azul“ (“Pale blue dot”), sobre o nosso planeta: “A Terra é um
mero ponto em um vasto cosmo circundante, e na escala dos mundos os humanos são
irrelevantes”.
O astrônomo americano Carl
Sagan foi o segundo cientista mais popular do século XX, depois do físico Albert
Einstein. Ficou bastante conhecido do grande público na década de 80 por
apresentar a série televisiva americana “Cosmos” baseada no seu livro homônimo.
O cientista reunia a rara capacidade de transmitir, de maneira simples, temas
científicos bastante complexos, sem no entanto menosprezar a inteligência do
leitor. Através de dados estatísticos, divagações, analogias, mitos e histórias,
ele tratava de vários assuntos, sempre fiel ao compromisso de cientista,
versando sobre o quão ínfimos somos nós em relação ao cosmo, despertando-nos a
uma reflexão da nossa existência no planeta e no universo.
O cientista foi consultor e
conselheiro da NASA desde os anos 50, e trabalhou com os astronautas do projeto
Apollo antes de suas idas à Lua, e também participou das missões Voyager cujo
objetivo era estudar os planetas Júpiter e Saturno e suas luas.
Li recentemente o livro
póstumo do cientista, intitulado “Bilhões e bilhões – reflexões sobre vida e
morte na virada do milênio” (textos sobre temas diversos publicados pela sua
esposa, após a sua morte), e me pareceu que o cineasta dinamarquês também andou
lendo o astrônomo e se inspirando nas palavras do cientista para filmar
“Melancolia”.
Ao ler Sagan vamos
descobrir que “talvez não haja melhor demonstração da tolice das vaidades
humanas do que a imagem distante do nosso pequeno mundo, pois ela enfatiza
nossa responsabilidade de tratarmos melhor uns aos outros, e de preservar e
estimar o único lar que conhecemos” e que “não há nenhum indício de que a ajuda
virá de algum outro lugar para nos salvarmos de nós mesmos” (lembrando as
palavras da protagonista em “Melancolia”), nos convocando para revermos nossas
atitudes em relação ao meio-ambiente, aos poluentes, ao buraco na camada de
ozônio, nossa imaginária auto-importância, a ilusão de que temos alguma
importância privilegiada no universo.
A leitura dos seus livros é
extremamente prazerosa. Inteligente e perspicaz, ele incita o leitor a
reflexões sobre vida e morte (do planeta, do Universo, do ser humano), sobre caráter,
religião, crendices, assim como perguntas (sem respostas, óbvio) sobre a origem
da vida, a existência ou não de Deus e de extraterrestres.
Numa linguagem clara e
razoavelmente técnica, mas compreensível para o leigo em astronomia e física,
ele alerta para a elevação da temperatura no planeta e o efeito estufa, a
degradação da camada de ozônio e a devastação das florestas, e desperta
reflexões profundas no leitor sobre os cuidados que devemos tomar para frearmos
a destruição do planeta, sugerindo inclusive soluções simples e sensatas para
tal, como a união da ciência com a
religião.
Mas também nos diverte com
suas histórias, como a do título do seu livro “Bilhões e bilhões”, sobre o
imaginário popular em relação a números infinitamente grandes (“pois é difícil
falar sobre o cosmos sem usar números grandes”) como milhões, bilhões e
trilhões.
Como, por exemplo, quando
ele cita, no livro, uma antiga piada sobre um expositor de um planetário que
diz à sua platéia: “Em cinco bilhões de anos, o Sol vai aumentar até se tornar
um gigante vermelho inchado que engolirá os planetas Mercúrio e Vênus e
finalmente engolirá a Terra”. Mais tarde, um ansioso (e temeroso) membro da
platéia o aborda: “Desculpe-me, doutor, mas o senhor disse que o Sol vai
arrebentar a Terra em cinco bilhões de anos? “Sim, mais ou menos”, concorda o
orador. “Graças a Deus”, responde aliviado o ouvinte, ”por um momento pensei
que tivesse dito só cinco milhões de anos”.
O cientista morreu em 1996,
aos 62 anos, após ser vencido numa árdua luta de dois anos contra um câncer de
medula óssea, e toda sua batalha pela vida, contra a doença, está registrada
também no livro “Bilhões e bilhões”. Além das reflexões sobre o sentido da vida
(e da sua própria), o cientista discute questões científicas, filosóficas e
políticas que tanto o inquietavam, temas polêmicos como a vida em outro planeta
e a existência ou não de Deus, debate sobre os interesses financeiros sórdidos
que existem por trás dos tratados que visam diminuir os gases poluentes e a produção
de clorofluorcarbonetos que contribuem para o aquecimento global do planeta.
Além da série televisiva
“Cosmos”, outro livro do cientista foi parar nas telas do cinema. “Contatos”
(“Contacts”) foi adaptado para o cinema em 1997 e estrelado pela atriz Jodie
Foster. Ficção científica sobre contatos com alienígenas em que ciência e razão
são confrontados com religião e fé.
O belo vídeo “Pense” (veja
no final do texto), narrado pelo próprio cientista, com cenas de memoráveis
filmes de cinema, mostra o minúsculo ponto
solitário que representa o nosso pequeno planeta na grande e envolvente escuridão
cósmica, e que conhecer astronomia leva a uma experiência de humildade e
formação de caráter, pois “o planeta Terra é um palco muito pequeno numa imensa
arena cósmica”, e “goste ou não a Terra é o lugar que estamos estabelecidos” alertando-nos
sobre a responsabilidade de cuidar e preservar o “pequeno e pálido ponto azul”.
Quanto à “Melancolia”, uma experiência cinematográfica avassaladora, é o cinema em forma de poesia impactante alertando para a catástrofe que tanto temia o cientista morto. Torçamos para que o fim dos tempos seja sempre uma bela ficção poética e apocalíptica do cinema. Só do cinema.
E relembrando outro grande cineasta, o intelectual existencialista "neurótico e nervoso" Woody Allen, questionador do inquestionável: "Mais do que nunca na história, a humanidade está numa encruzilhada. Um caminho leva ao desespero e a absoluta falta de esperança. O outro à total extinção. Vamos rezar para escolhermos corretamente".
Quanto à “Melancolia”, uma experiência cinematográfica avassaladora, é o cinema em forma de poesia impactante alertando para a catástrofe que tanto temia o cientista morto. Torçamos para que o fim dos tempos seja sempre uma bela ficção poética e apocalíptica do cinema. Só do cinema.
E relembrando outro grande cineasta, o intelectual existencialista "neurótico e nervoso" Woody Allen, questionador do inquestionável: "Mais do que nunca na história, a humanidade está numa encruzilhada. Um caminho leva ao desespero e a absoluta falta de esperança. O outro à total extinção. Vamos rezar para escolhermos corretamente".
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