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sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Metalinguagem: o cinema desnuda os bastidores do cinema

Um cineasta, antes de tudo, é um cinéfilo por excelência, um amante devoto do cinema. E a metalinguagem (figura de linguagem usada para escrever a própria linguagem) é a forma mais charmosa que o cineasta pode lançar mão, demostrando sua verdadeira paixão pela sétima arte, ao discutir, no próprio filme, o conceito da sua arte e seu processo de construção, desvendando os mistérios escondidos por trás da cortina que separa o artista do público em geral.

É o cinema falando do cinema ("para o bem ou para o mal"). De Woody Allen, com sua romântica homenagem à sétima arte em “A rosa púrpura do Cairo”, à sensibilidade extrema de Giuseppe Tornatore, no mágico “Cinema Paradiso” (leia sobre esses filmes, aqui no blog, na "lista de filmes"), a metalinguagem já foi usada por vários cineastas em muitos filmes de arte, mas produções de menor importância no circuito cinematográfico também usaram esse caminho narrativo.

Por exemplo, a “quarta edição” do filme de terror “Pânico” (“Scream IV”) usou um filme fictício (“Stab, a facada”) e uma continuação do mesmo, dentro do próprio filme, também fictício, até chegar finalmente ao filme em questão. É o filme, dentro do filme, dentro de um terceiro filme, transformando brincadeiras metalingüísticas repetitivas, literalmente, em um banho de sangue, numa abertura prá lá de criativa, e até divertida (quase um “terrir”), num filme cuja proposta na verdade sempre foi o terror.
E dando continuidade à “série” sobre cinema europeu, aproveito para falar do cinema francês, pois a maior homenagem de amor eterno ao cinema talvez tenha vindo da França, dos dois maiores representantes da “nouvelle vague”, os cineastas François Truffaut e Jean-Luc Godard.

A “nouvelle vague” (“nova onda”) foi um movimento artístico revolucionário do cinema francês, que surgiu na década de 60, com o objetivo de contestar as normas que regiam o cinema de então (que tinha se tornado extremamente comercial, nas décadas anteriores, no pós-guerra).

Em 2010,  foi realizado um documentário, intitulado "Two in the wave", dirigido pelo francês Emmanuel Laurent, em homenagem aos 50 anos da "nouvelle vague" e seus dois maiores representantes, Truffaut e Godard (veja trailer abaixo).
Liderado por jovens autores (além de Truffaut e Godard, também Alain Resnais, Claude Chabrol, René Clair e outros), que trabalhavam como críticos de cinema, na famosa revista francesa sobre a sétima arte, a “Cahiers Du Cinéma”, o movimento pregava a importância do retorno do “cinema de autor”, e uma das características mais marcantes desse novo estilo de fazer cinema foi a intransigência e o rompimento com os moldes narrativos do cinema pré-estabelecido, voltando-se para o amoralismo, presente nas cenas e nos diálogos, sempre numa montagem inusitada, não mais presos a linearidade narrativa (veja vídeo sobre o movimento no final do texto).

O movimento revolucionou todo o cinema mundial, se espalhando pela América, influenciando também cineastas da “Nova Hollywood” como Francis Ford Coppola, George Lucas, Robert Altman, Brian de Palma e Martin Scorsese, e o cinema nunca mais seria o mesmo, no mundo inteiro, a partir desse movimento.

Godard e Truffaut eram grandes amigos nessa época e, no início dos anos 70, romperiam a longa amizade iniciada na redação da “Cahiers Du Cinéma”, e a ruptura seria para sempre, apesar de Godard tenha tentado, nos idos dos anos 80, uma reconciliação que acabou não acontecendo, com Truffaut falecendo, exatamente nessa época, por câncer cerebral.

Em “A noite americana” (“La nuit américaine”, 1973 ou "Day for night"), Truffaut é o próprio diretor do filme dentro do filme, usando a metalinguagem em toda sua excelência. O filme, dentro do filme, se chama “Je vous présente Pamela”, e o diretor leva o espectador a acompanhá-lo em todos os passos do processo de criação de um filme, dentro do próprio filme, com todos os tropeços e atropelos comuns aos bastidores de uma filmagem, tanto em relação aos percalços com a equipe de produção, como também o que rola por trás dos holofotes como traições e crises de estrelismos dos atores, pois "nem tudo são flores" no mundo do cinema, e nem só de "tapete vermelho" e glamour vive a sétima arte.

“A noite americana”(com a atriz britânica Jacqueline Bisset) ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro de 1974, e o título faz menção ao fato de que o diretor (o próprio Truffaut no filme fictício) precisa transformar uma tomada diurna em noturna, utilizando para isso um efeito cenográfico com filtros de imagem, numa crítica mordaz ao cinema “fake” americano.

Mesmo aclamado mundialmente, Truffaut foi duramente criticado por Godard, e parece ter sido esse o estopim que levou definitivamente ao rompimento da amizade, pois Godard cobrava de Truffaut mais envolvimento político revolucionário em seus filmes (o mundo vivia em plena era da bipolaridade nuclear da Guerra Fria, e tinha também a questão do petróleo e o Vietnã - veja vídeo no final do texto), e praticamente considerava Truffaut um “traidor do movimento”, mas este preferiu continuar a se enveredar pelo universo filosófico dos relacionamentos, num cenário claramente apolítico nos seus filmes.

A filmografia de Truffaut é extensa, e em cada um dos seus filmes percebe-se a verdadeira adoração que o cineasta nutria pela sétima arte. O seu primeiro trabalho cinematográfico, o autobiográfico “Os incompreendidos” (“Les quatre cents coups”), um dos principais representantes da “nouvelle vague”, foi baseado nas suas próprias experiências de infância e adolescência.

Truffaut teve uma infância difícil, maltratado pelo padrasto e rejeitado pela mãe, não conheceu o verdadeiro pai, e foi justamente a sua paixão pelo cinema desde a infância que o salvou de uma pré-adolescência praticamente delinqüente, repleta de pequenos furtos e freqüentes prisões. São dele os famosos títulos: “Jules et Jim – uma mulher para dois” com Jeanne Moreau, “A história de Adelle H” com Isabelle Adjani, “O último metrô” com Gèrard Depardieu e Catherine Deneuve, e muitos outros (veja filmografia, no final do texto).

Jean-Luc Godard também usou a metalinguagem para falar do cinema (dez anos antes de Truffaut), em “O desprezo” (“Le Mépris”,1963) com a musa Brigitte Bardot, que vive o papel da mulher de um roteirista de cinema fracassado, e este se mostra indiferente à bela esposa, e a quem parece agradar a idéia de ter uma mulher que todos os homens desejem descaradamente.

Godard em “O desprezo” lança um olhar crítico entre o cinema comercial e a independência artística. Mas na verdade ele próprio acabou por se envolver no seu próprio conflito, ao trabalhar com um vasto orçamento (que o movimento abominava) e uma atriz-vedete “chamariz de público”, como era considerada a musa francesa “La Bardot”.

Jean Luc-Godard sempre foi ousado nos seus argumentos cinematográficos, e seu filme de estréia na década de 60, foi como um estopim, atingindo o mundo inteiro como um choque elétrico, ninguém saiu imune após “Acossado” ( “À Bout de Souffle”), quebrando todas as regras que o cinema conhecia até então.

“Acossado” é praticamente o elo perdido entre o clássico, comedido e dissimulado cinema dos anos 50 e os filmes transgressores que surgiriam na década seguinte, inaugurando (e "disseminando") definitivamente a “nouvele vague”, coincidindo com a revolução na música com o rock and roll,  a greve estudantil de maio de 68 e a repressão da polícia francesa no Quartier Latin,  a rebeldia da juventude que queimava sutiãs e abalava o mundo com seus novos conceitos sem preconceitos.

Em “Acossado” (foi Truffaut, ainda na fase em que eram grandes amigos, quem teve a idéia e escreveu todo o roteiro do filme, a partir de uma notícia de jornal), Godard não poupou mostrar escancaradamente a verdadeira “juventude transviada”, na pele do personagem do ator Jean-Paul Belmondo (o personagem de James Dean é “fichinha” perto do de Belmondo), e o par feminino do ator no filme chocou os puritanos da época por sua libertinagem, e o visual despojado da atriz com o cabelo bem curto virou ícone da moda naquela época.

Godard manteve-se ousado com a idade, como demostrou com o polêmico “Je vous salue, Marie” de 1985, e agora acaba de completar 80 anos de idade (veja filmografia no final do texto). E a sétima arte, nos dias de hoje, com os novíssimos cineastas, continua a usar a metalinguagem, numa constante prova de amor ao cinema, sempre homenageando essa bela e magnífica arte.

Alguns “metalingüísticos” famosos: o bizarro roteirista Charlie Kaufman com o surreal "Quero ser John Malkovich” e em crise consigo mesmo em “Adaptação”, o diretor Robert Altman e as participações especiais de celebridades em “O jogador”, o cineasta Martin Scorcese com a "participação" das estrelas de Hollywood dos anos 30 em “O aviador”, e não dá prá esquecer do grande Frederico Fellini, com o seu auto-retrato biográfico em “8 ½ de Fellini”.

E Woody Allen acaba de prestar sua homenagem ao cinema francês (a quem refere ter uma "dívida eterna" com Truffaut, Godard, Renois e René Clair, pela grande influência desses autores no seu trabalho) com o seu divertido “Meia noite em Paris”, uma bela homenagem a Paris dos anos 20 e também da “Belle Époque".

E faço minhas as palavras de Truffaut, que dizia: "Prefiro ver a vida através dos livros e do cinema"... "Não me interessam as paisagens nem as coisas materiais. Me interesso pelas pessoas, amo as idéias, os sentimentos".































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