“Somos tão
jovens”. Abro esse texto com trechos da música “Tempo perdido”, do Renato Russo. “Temos
todo o tempo do mundo” e “não temos tempo a perder”.
Na transição das décadas 70/80, coincidentemente quando
a banda “Legião Urbana” estava se formando, nessa mesma época, eu e mais 95
jovens (a maioria recém-saídos da adolescência), ingressávamos na Faculdade de Medicina de
Campos, minha cidade natal (cidade interiorana norte-fluminense, machista e preconceituosa,
como muitas outras cidades naquela época), a maioria desses jovens vindos de várias cidades do
Brasil, do “Oiapoque ao Chuí”.
Apesar de ansiosos e, ao mesmo tempo, temerosos (pela
novidade do ingresso numa futura vida profissional adulta), antes de tudo, como
na música da cultuada banda, a sensação era de que éramos (e continuaríamos a ser)
eternamente jovens e imortais, que nada nos deteria, e que tínhamos um mundo
inteiro aos nossos pés a conquistar.
Parecia que jamais iríamos envelhecer. Talvez pela
falta de fotografias registrando nossa infância, pois ninguém tirava fotos “a rodo”
dos filhos naquela época (como acontece nos dias de hoje com a evolução tecnológica dos “instagrams”
da vida), assim nossa memória fotográfica só começava a registrar o mundo a nossa
volta na fase da adolescência, quando passávamos a questionar tudo (como
qualquer jovem nessa fase da vida), e parecia então que nossos pais sempre
foram de “meia idade” e que nossos avós já
nasceram velhos, mas nós não, seríamos sempre jovens, eternamente jovens e
imortais.
Passados exatamente trinta anos, fomos (quase) todos, nesse último fim de semana, para um hotel em Búzios para um encontro histórico da turma (por contratempos da vida, foi o meu primeiro
encontro com a “galera” desde a nossa formatura, mas parte da turma já vinha se
reunindo pelo menos a cada 5-10 anos).
Para surpresa de todos, um dos colegas de apelido “Rocha”, numa visão futurista (o apelido/sobrenome parecia vir a calhar, pois um pouco mais velho que a maioria,
talvez já tivesse a maturidade de uma “rocha”, que nós mais jovens ainda não tínhamos), teve a perspicácia de guardar uma foto 3x4 da época de cada um de nós (de
um arquivo da faculdade, que deveria ter sido descartada pelos monitores de uma das disciplinas, onde ele era um deles), imaginando que, quem sabe um dia, aquelas
fotos virariam “quase relíquias”, e então as guardou cuidadosamente (e eu diria,
saudosamente) durante todos esses trinta anos.
E, ao nos depararmos com aquelas fotos amareladas, ficamos
todos maravilhados, cada um se reconhecendo no registro daquelas carinhas ainda
livres de rugas (e de medos e preconceitos, que certamente teríamos com o passar da
juventude) e ainda cheios de esperança por um mundo melhor,...afinal éramos uma
turma de medicina, dali sairíamos “doutores poderosos prontos para consertar o
mundo” (na época, um mundo torto e cruel num Brasil ainda sob o regime ditatorial militar).
A formação acadêmica iria nos modelar em direção à
responsabilidade da profissão médica, mas naquelas fotos 3x4 não sabíamos ainda
disso, afinal éramos jovens, tão jovens...
E, como amante da sétima arte, me lembrei imediatamente do vídeo “Sunscreen”
de um discurso de formatura (veja abaixo e, no final do texto, *link para detalhes sobre a produção desse belo vídeo) com os belos conselhos enfim concretizados naquelas fotos amareladas de trinta anos atrás: “Depois de vinte anos, você olhará suas fotos e compreenderá o
poder e a beleza da sua juventude, quando ela já tiver desaparecido” e “quanto
mais você envelhece, mais precisa das pessoas que te conheceram na juventude”.
E, com a maioria completando meio século de existência,
nos tornamos o “centro da atenção” em centenas de poses para fotos (clicados
pelos vários flashes das câmeras dos nossos filhos, maridos e esposas e alguns já com netos), registrando
aquele momento histórico das nossas vidas, os trinta anos de formatura para mais uma
posteridade (provavelmente, no próximo encontro, o grupo vai estar dividido em “safenados”
e “angioplastiados”), mas a sensação era de que voltamos todos no tempo, e
parecíamos que éramos ainda aqueles mesmos jovens, tão jovens...
Alguns com a mesma carinha e sorriso (por baixo dos fatídicos
“sinais da passagem do tempo”) e outros irreconhecíveis (a ponto de nos
perguntarmos “quem é você aqui?” apontando a foto amarelada 3x4), assim, observadora
que sou, fiquei admirando todo o grupo em bate-papos animados, ao som da banda
ao vivo que tocava músicas dos nossos idos anos 80.
E tal qual uma fita cassete da época, fui rebobinando
na minha memória, fatos guardados e aparentemente esquecidos no tempo (ainda
bem que o Alzheimer ainda não me “pegou”) e saudosamente me vi de volta aos meus 18 anos de idade, naqueles imensos
auditórios (que cabia os 96 alunos da turma), nas salas tipo “puleiros”
assistindo a aula de anatomia no “cadáver modelo”, os trotes dos calouros que
viravam festa na cidade (num misto de aprovação pelo acontecimento em si e de reprovação por conta da proliferação de “repúblicas repletas de jovens desgarrados”), as paqueras e as frustrações amorosas durante a
faculdade, e o temor das provas de Farmacologia e Fisiologia com a choradeira
fatídica dos que não conseguiam (e dos que conseguiam também) aprovação na disciplina.
E jovens rebeldes em plena ditadura militar, claro que
não deixávamos passar nada em branco, a turma dava o troco e tocava terror com o
professor da tal disciplina (apelidado de “Paulo Boko Moko” pela turma), com a
publicação de capítulos mensais de uma “novela” (que eram ansiosamente
aguardados por toda a faculdade, e espalhados por todos os murais para desespero do tal
professor) intitulada “Quem matou Paulinho Boko Moko?” (parafraseando uma
novela famosa da época “Quem matou Salomão Hayala?”). Era hilária a tal “novela”. No último ano da faculdade eu passei a fazer plantão com o tal professor, que na verdade era boa gente e, exigente, só queria o melhor para a turma.
E apelidos era o que não faltavam, e alguns
simplesmente duraram toda a faculdade, a ponto de não mais nos lembrarmos do nome
original dos colegas: a dupla “Vovó e Precioso” (de um desenho animado da época),
nomes comuns ganhavam acréscimos para diferenciar um do outro, como o “Luís Piranha”
e o “Luís Surfista” e outros ganhavam o nome da cidade de onde vinham como o
colega “Ribeirão” e o colega “Uberlândia”.
E a lição de moral recebida pela turma, logo nos
primeiros meses da faculdade, quando ainda calouros e jovens peraltas que
éramos, ficaria marcada para sempre nas nossas mentes e corações: um dos
colegas escreveu algo inconveniente, com giz, na testa de um dos cadáveres do “Anatômico” (a grande sala prática de anatomia) e o
sermão do professor (“aqui jaz um corpo sem vida que hoje serve como estudo
para vocês, mas que um dia teve alma, viveu e sofreu como qualquer um de nós, e
devemos respeitá-lo como respeitaríamos um ente querido”) ficaria marcado para sempre nas nossas
lembranças, como um preparo para a responsabilidade da profissão que iríamos abraçar,
no juramento de Hipócrates, dali a seis anos.
Assim como Renato Russo, alguns da turma se foram, “desta
para melhor” (levados pela AIDS, câncer ou acidente) e no encontro que acabou de acontecer no hotel em Búzios, nos recordamos deles com carinho, enquanto outros
simplesmente “sumiram no mapa” e o silêncio que se seguia quando alguém anunciava “o sumiço”, denunciava telepaticamente
o que todos provavelmente estavam pensando: “também não fez falta nenhuma” (ai, que maldade!!!).
E eis que no último dia da confraternização (foram três dias no hotel), um dos colegas, o Luís Piranha, sofreu uma ferida corto-contusa na perna ao escorregar próximo às cadeiras em volta da piscina – nada grave, mas o suficiente para o sangue jorrar em profusão pelo corte – e eis que, óbvio, voltamos mais uma vez à adolescência, com mais de 50 doutores ao redor do “acidentado”, hilariamente gritando “emergência, chamem um médico”.
Logo surgiu uma maleta de primeiros socorros e já começou a gaiatice, enquanto o colega cirurgião providenciava o curativo compressivo, o colega proctologista se prontificou a fazer “o toque retal”, eu como cardiologista fiquei a postos para a “cardioversão elétrica”, e os colegas obstetras estavam indecisos entre “cesárea ou fórceps”, mas os pediatras garantiam uma “sala de parto padrão” para a pequena pança do nosso colega acidentado (rsrsrsrs).
E foi mais um motivo para uma enxurrada de fotos, agora com o Luis Piranha com a perna enfaixada fazendo poses esdrúxulas para mostrar a perna acidentada, o que rendeu mais picardias adolescentes: “continua o mesmo piranha de sempre esse Luís”.
Passados esses trinta anos, só agora admitimos que
jovens envelhecem sim, que nossos pais e avós também já foram jovens, e hoje,
mais realistas e conformados, olhamos com carinho nossos filhos adolescentes/adultos
jovens, tão “perdidos” como nós também um dia fomos; o tempo nos ensinou a desacelerar (eu ainda estou tentando aprender) e a aceitar as mazelas da vida, cada um carregando os seus pequenos (ou grandes) dramas
pessoais, e a dar valor a esses encontros (e mesmo os desencontros) que a vida
nos proporciona.
E, como cinéfila, para ilustrar esse meu texto que
dedico a toda a nossa turma de “eternos formandos”, indico o poético, emotivo e belo filme argentino “O filho da noiva” (sobre a necessidade de desacelerar e repensar as relações entre pais e filhos, principalmente diante das enfermidades irreversíveis), o mágico e fantasioso filme francês “O
fabuloso destino de Amélie Poulain” (a sensível protagonista que acha uma caixa antiga de
brinquedos e decide encontrar seu dono 50 anos depois), “Peggy Sue: seu passado a
espera”, de Francis Ford Coppola (uma fantasia na volta aos tempos da faculdade, com uma ótima trilha sonora) e “Somos tão jovens” (sobre
a trajetória da vida de Renato Russo e a formação da banda “Legião Urbana”) –
trailers dos filmes no final do texto.
E parafraseando o famoso comercial: “tem coisas na vida
que não tem preço, e rever a turma trinta anos depois foi uma delas”. E termino o texto parabenizando a todos nós, no nosso dia do médico (no próximo 18 de outubro).
*link para detalhes sobre o vídeo “Sunscreen”
http://rosemerynunescardoso.blogspot.com.br/2011/12/efeitos-especiais-making-of-no-cinema.html
Rose, seu texto está sensacional! Você conseguiu resumir o sentimento de cada um de nós. Não nos perderemos nunca mais. Um grande beijo. Monique
ResponderExcluirQue bom que gostou! Espero que todos leiam com o mesmo prazer que eu tive ao escrever. Acho que captei fielmente o sentimento de toda a turma. Beijos
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